quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Pobre audiodescrição!

Publicado por Lucia Maria em 28 de novembro de 2014 Seu Amaury é mecânico aposentado, tem 81 anos e sua visão vem diminuindo pouco a pouco há quase uma década. Hoje, enxerga apenas vultos e “só de dia”, como diz. Há dois anos, conheceu a audiodescrição quando assistiu ao DVD do filme “Chico Xavier”. Surpreso e fascinado por entender tudo mesmo sem enxergar e sem precisar perguntar a alguém e a todo momento o que estava acontecendo, de vez em quando murmurava durante a projeção: “Rapaz, mas que beleza!” Virou fã e a família conta que até hoje não se cansa de perguntar: “Como é que uma coisa dessa, tão útil para tanta gente, não tem na televisão, em tudo quanto é programa?” Ao que a mulher sempre responde: “Vamos esperar que qualquer dia desses muda, Amaury”. A passividade e o silêncio têm sido a resposta à pergunta do seu Amaury. Silêncio dos audiodescritores, silêncio dos cegos. Se temos uma Constituição Federal que garante às pessoas com deficiência a igualdade no acesso a todo tipo de produtos e serviços; se temos um enorme público televisivo formado por pessoas cegas e com baixa visão no país; se temos como tradição excelentes e experientes profissionais da audiodescrição, os mesmos que ministram cursos desde 2005, com a implementação neste ano do primeiro em pós-graduação; se operadoras a cabo já disponibilizam o recurso; e se 95% das residências do país têm ao menos um aparelho de televisão, por que é que as emissoras abertas têm apenas quatro horas de programação semanal com audiodescrição, sendo que as conquistas de acessibilidade na TV para os cegos vieram sempre na rabeira das conquistas dos surdos? A resposta é muito simples e consenso entre ativistas de direitos: pessoas com deficiência NÃO são consideradas um público consumidor. Fosse a maioria formada pela classe média, a carga horária semanal de programação audiodescrita certamente seria muito maior. Foi assim para a até então invisível população de pessoas com deficiência nos Estados Unidos, que começou a receber atenção somente a partir da Segunda Guerra Mundial, quando jovens soldados americanos voltavam para casa cegos, surdos ou em cadeiras de rodas. Foi assim também com os direitos humanos dos presidiários no Brasil, que só passaram a existir a partir da prisão, tortura e morte de milhares de estudantes durante a ditadura. A histórica briga dos audiodescritores em Brasília pela implementação do recurso na televisão brasileira há quase dez anos foi boa, mas parou ali – e fica cada vez mais fácil entender o desânimo e o cansaço de uma luta absolutamente desigual que envolve, de um lado, o cumprimento de direitos das pessoas com deficiência e, de outro, os interesses comerciais da poderosa Abert, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, que consegue facilmente e há anos, com seus recursos e liminares na Justiça, impedir a ampliação da audiodescrição na televisão, alegando alguns dos mesmos e já ultrapassados motivos de sempre, como a falta de audiodescritores especializados no mercado. Embora duas emissoras de TV estejam investindo em acessibilidade, uma delas com sua própria equipe de audiodescritores, a mesma que até ultrapassa a cota obrigatória de quatro horas semanais de programação audiodescrita, é desumano e uma tremenda ver-go-nha que haja tamanho empenho da Abert em restringir ao máximo um recurso de fundamental importância para quem não enxerga, no principal veículo de informação e lazer do brasileiro que é a televisão. Vergonha que se estende ao Supremo Tribunal Federal por ceder aos interesses das emissoras e, pelo mesmíssimo motivo, chega ao Ministério das Comunicações, esse, sim, o maior responsável por essa novela interminável ao publicar portarias que permitem uma boa margem de manobra à impetração de recursos que acabam resultando na impossibilidade de ampliar a audiodescrição nas TVs. O trio Abert, STF e MinC nada feliz na raia, sem encontrar a menor resistência em suas ações porque audiodescritores estão sem voz, não têm representatividade. É preciso que se organizem em uma associação forte, formada por profissionais éticos e, principalmente, independentes de quaisquer instituições e interesses políticos e politiqueiros, para que tenham liberdade e credibilidade ao se posicionar publicamente em relação a este e a tantos outros episódios, como o da AD feita apenas por voluntários durante a Copa do Mundo, mais um reforço em rede nacional à ideia de que tudo o que é para pessoas com deficiência tem de vir da caridade e de que a audiodescrição de um evento ao vivo e desta monta se aprende da noite para o dia. E os cegos, por que não reivindicam o recurso? Porque cegos, em sua maioria, não costumam reivindicar nada. E a maior parte dos que opinam parece gostar mesmo é de uma boa de uma lista de discussão. Falam do meio para o meio. “Precisamos fazer isso”, “precisamos fazer aquilo”, escrevem, indignados, em textos entusiasmados e bem embasados. E a coisa morre rapidamente ali mesmo. A audiodescrição também não é prioridade para eles. Realmente, há demandas mais urgentes, bem mais importantes, além de a maioria não conhecer o recurso, restrito principalmente a seminários sobre acessibilidade, peças de teatro e filmes no eixo Rio-São Paulo. Se há outro consenso entre ativistas, é o de que a audiodescrição só será importante para quem não enxerga quando for um hábito e estiver, por exemplo, nos principais programas das TVs. Aí, sim, se for retirada, todo mundo vai reclamar. Tem outra: assim como os audiodescritores, cegos não têm representatividade. Existem hoje no país três recentes e combativos, mas ainda embrionários movimentos sociais, formados em sua maioria por pessoas cegas e com baixa visão: Cidade para Todos, Visibilidade Cegos Brasil e Cegos em Rede, únicos a lutar publicamente e com seriedade pelo cumprimento de seus direitos, seja pelas redes sociais, seja indo a Brasília entregar cartas e documentos a parlamentares ou ainda em ativas e sempre pertinentes participações em eventos sobre acessibilidade (quando valem a pena). O resto, infelizmente, é a organização nacional que representa apenas o assistencialismo. Promove e participa de eventos que são um fim em si mesmos e que mais parecem encontros sociais entre velhos amigos, os mesmos de sempre, viajando e se hospedando de graça pelo Brasil e para outros países sem que ninguém conheça uma única ação que tenha resultado em benefícios reais para os cegos. O que se sabe mesmo e pelas redes sociais é em qual aeroporto estão, o horário do vôo, o nome do restaurante em que estão jantando, o prato que pediram e as comprinhas que fazem durante sua agradável estadia. E alguns ainda se autointitulam “militantes”, como se caridade fosse causa pela qual se luta… A audiodescrição é, então, somente mais um dos temas inutilmente debatidos quando a ideia é mostrar serviço, espertamente utilizada também por políticos em ano eleitoral, quando promovem audiências públicas para listar as dificuldades à implementação do recurso, coisa que já sabem de cor e há muito tempo. É só esperar que, daqui a quatro anos, teremos uma nova rodada delas. E se São Paulo é o maior mercado de audiodescrição do país, sonho de muitos profissionais, não tenham dúvida de que a bucha do canhão também é bem maior por aqui, com gente que conhece o recurso mais ou menos e entra em concorrências públicas para festivais de cinema e espetáculos de teatro, joga o preço lá embaixo, ganha e, embora alguns cegos habituados à AD já enviem suas críticas aos responsáveis pelas casas, a maioria acaba gostando apenas por existir o recurso, uma vez que ainda não tem repertório suficiente para comparação, única maneira de avaliar a qualidade dos trabalhos. E, claro, não poderia faltar uma menção à instituição paulistana que usa o nome e a tradição de décadas no atendimento assistencialista aos cegos para atrair incautos para sua conhecida e muito bem paga produção de audiodescrição em série, correta apenas quando os produtos têm grande visibilidade no meio, como filmes. A qualidade de suas descrições de imagens em todo tipo de livro está onde Judas perdeu as meias, porque as botas ficaram lá atrás. Nunca passaram de grosseiras e mal escritas legendas, um enorme desrespeito a quem não enxerga e que engole mais esse sapo amazônico sem reclamar. O jeito é continuar esperando: afinal, qualquer dia desses tudo muda, não é? fonte:outros olhares

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